fevereiro 03, 2009

O rapaz e o seu chão

Era uma vez (eu tinha-te dito que começaria assim, lembraste?) um rapaz que gostava de contemplar o andar dos seus próprios passos. Não era um olhar para trás, como que a ver as suas pegadas deixadas na areia, nem era um olhar demasiadamente para a frente a fim de tentar descobrir que pavimentos o reservará. Era um ligeiramente para a frente dos seus próprios passos, o suficiente para não cair em algum degrau, ou bater com a cabeça nalgum sinal, como tantas vezes se ouve dizer que acontece.
Nesses seus passeios em que esse rapaz ia olhando para o seu progressivo chão, tantas coisas que lhe iam ocorrendo. Uns dias dedicava-se a contar quantos quadrados tinha o passeio da rua, outras vezes ia anotando como eram diferentes o calçado das pessoas e as formas como as suas roupas se precipitavam para o chão. E em todos esses trajectos ia imaginando como seriam de facto a cara das pessoas. Tentava, por vezes, calcular se estariam contentes, tristes ou chateadas, se aquele seria um dia bom ou um dia mau, se estavam ou não com pressa. No fundo, no chão e pelo chão aquele rapaz ia conhecendo ou aprendendo novas formas, pensava ele, de conhecer o mundo e de ser conhecido. O certo é que na escola onde andava, vencia todos os concursos que havia, como aquele, recordo-me de alguns, em que se tinha de contar todas as escadas da escola, um outro que era contar os azulejos dos corredores (e que grandes que eles eram). E isso valeu-lhe alguma fama, e muitos prémios.
Mas como tudo, esta fama e estes prémios pagam-se caro. Quando passava nos átrios da escola, com o seu habitual olhar baixo, com o cabelo ligeiramente descaído para a frente, ia ouvindo risos e conversas como estas “olha aquele ali que ganhou o concurso dos estrados… pudera está sempre a olhar para o chão. Sabias que agora há um concurso que é contar as lâmpadas da escola? Ahahah”. E isto ia entristecendo o rapaz que parecia perceber muito de matemática e estatísticas mas que de facto nada de percebia de lâmpadas, estrelas ou mesmo de pessoas.
Um dia, saindo de casa, como sempre pontual e sem grandes pressas, viu no chão da paragem do auto carro uma capa de um jornal, já sujo e amarrotado. Tinha como título “Este sorriso diz tudo”. Mas o que o cativou foi mesmo a imagem: uma criança fazendo um dedo de fixe para um soldado que a tinha acabado de salvar. Mas não foi o dedo ou o soldado que o deixaram curioso, foi o sorriso que a criança lançava para cima, na direcção do soldado.
Nesse dia o rapaz não pensou noutra coisa, até se esqueceu das famosas contagens de passeios ou de sinais ou de quaisquer outras coisas. Não porque as soubesses de cor, sim porque até nesse mundo há alguma novidade, mas porque ia a pensar naquela imagem, naquele sorriso. E de quando em vez lá abria a folha de jornal que havia pegado do chão e ficava assim a olhar para ela, a pensar. E foi assim, a contemplar e a pensar, que nesse dia adormeceu.




(continua….)

Dá-me um sorriso [Gratuito]!


[p.s. é só para não ficar muito longa, ou porque agora não é tempo de a continuar. Deixa-me antes ir contar os degraus que me levam até à cozinha para jantar]

1 comentário:

«Faz-me sorrir: surpreende-me!»

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